Domingo, três horas da madrugada. “Socorro, moço, me ajude!” Do outro lado da janela, postes com luzes apagadas. Uma roseira – que não morreu afogada com as chuvas de semanas atrás – resiste ao pouco vento, balançando de um lado para o outro. “Entre no carro, pare de ser bêbada!”
Abro a janela e tento me esconder por trás da cortina. Vejo uma luz embaçada – onde raios estão os meus óculos?
O farol de um carro. Parada na esquina, uma mulher, de braços cruzados, vestindo jeans e camiseta rosa, escorava-se na grade do prédio em frente ao meu. Chorava.
Outro carro passava – era obrigado a seguir na contramão: o carro parado atrapalhava o fluxo dos solitários paulistanos de vida noturna. “Chame a polícia, pelo amor de Deus!” Engraçado como as pessoas só lembram a religião nos momentos difíceis.
Ao piscar dos olhos deste observador míope, uma criança aparece na cena. Com camiseta branca e bermuda, anda como se fosse uma alma penada em tempos de lua cheia. Aparentando dez anos de idade, segura o braço da mulher: “Vamos, mãe, entre no carro!”.
A mãe do menino, talvez com trinta e poucos anos, olhou a criança com maldade: “Não quero. Você está defendendo ele!”. O menino disse que sim, porque era o pai. “Ele não é nada seu”, respondeu a moça.
O homem, de dentro do carro: “Entre logo no carro, eu só quero ir para a casa”.
Uma moto. “Chame a polícia, moço!”
Um pedestre. “Socorro, moço!”
Uma luz no fim do poste não se acendeu – talvez pela falta de responsabilidade de quem trabalha na Prefeitura –, mas uma no fim do túnel surgiu como um fósforo na floresta escura: “O que aconteceu, senhora?”. “Ele me bateu, moço, chame a polícia!”
“Entre no carro, que eu não vou te dar porrada mais. Eu só quero ir para a casa!”
O carro foi desligado.
A polícia foi chamada. Meia hora passada, nem sinal de vida do pessoal pertencente ao grupo que costuma agir com violência contra inocentes. A mulher se desesperava a cada momento. Descabelava-se: “Saia do meu carro! Esse carro é meu!”. “Mãe, vamos embora, por favor!”
“Ele me bateu, olha aqui! Tenho que limpar isso! E você fica defendendo ele?! Eu quero o meu celular para chamar a polícia.” O homem que estava no carro falou: “Está aqui dentro, venha buscar”. Ela mandou o filho. Com o celular, a mulher ligou para a polícia. Um grupo de jovens andava pela rua e viu que em nada poderia ajudar: afinal, nem a polícia quis ajudar. Mandaram apenas que o homem saísse do carro. Cercado, não teve outra opção.
Um pouco acima do peso e vestindo uma camisa do Corinthians (não diga que é preconceito, sou corintiano), ficou encolhido na entrada do prédio onde vivo por cerca de dez minutos.
Lentamente, um táxi passa por uma lombada. O homem, atento, vai ao meio da rua, para que o motorista pare. Negociam. “Eu não tenho dinheiro agora, mas eu te dou o endereço de casa para que você possa me cobrar.”
O taxista: “Prefiro ficar com esse seu celular como garantia”. “Ok, faço qualquer coisa. Vamos.” Entrou no carro e passaram pela mulher: “Moço, ele me bateu, olha!”. O taxista buzinou e seguiu o caminho da vida eterna.
Quatro e meia da madrugada, se bem me lembro e não me engano, a porta do carro da moça bateu, sendo fechada de um lado. Segundos depois, o mesmo, do outro lado. Uma luz voltou a se acender. O motor roncou.
Meu rosto, colado na grade da janela, observou um veículo ser manobrado e iniciar seu rumo para o desconhecido – para o tratamento da dor.
Fechei a janela e a cortina, numa madrugada escura de verão.
u.U da hora!
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Nossa muito interessante e profundas essas palavras. O tipo de texto que eu gosto!
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O texto me fez lembrar a situação aqui em Salvador, rsrs
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coisas de cidade…legal o texto…bem escrito…
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uM DOS BLOGS MAIS CRIATIVOS E BEM ESCRITOS, ALÉM DE ENREDOS LITERÁRIOS INTENSOS E COM TEXTOS QUE PRE NDE,M DE FATO O LEITOR.
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É o tipo de texto que vale a pena ler, você leva jeito pra isso. como comentaram ai em isso, também me fez lembrar a situação de Salvador.
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Parabéns pelo blog amigo,,
seguindo
http://1000artemanhas.blogspot.com/
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Eu não conseguiria dormir. Não consigo apenas observar, talvez seja bom, talvez seja ruim. Talvez eu me importe, ou apenas me meta. Mas a questão é que só não consigo me manter indiferente. Eu já teria chamado quinze delegacias diferentes e berrado até chegarem no lugar do personagem na janela. É agonizante, situações como estas, ainda mais com mulheres envolvidas, diante da violência de um homem.
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