“Abandonar o paraíso para ficar com ela.” Eu estava relendo pela décima vez o livro “Amor além da vida”, de Richard Matheson.
“Estremeci e olhei à minha volta.
Ginger lambia minha outra mão.
Olhei-a, incrédulo. Ouvi, o que era para mim, o som mais bonito no universo: a voz de Ann dizendo meu nome.
– É realmente você? – ela murmurou.
– Sim, Ann. Sou eu – Eu a vi por meio de uma cascata brilhante de lágrimas, com as mãos pra cima, cintura solta, dá meia volta, dança kuduro. Não se canse agora, começou a festa; mexa a cabeça e dança kuduro.”
No micro-ônibus, uma moça repousou a poupança Bamerindus ao meu lado. Ela e seu celular. Ela, seu celular e seu fone de ouvido. O fone de ouvido que ela resolveu desconectar. Ao meu lado. Num dia frio, sem um bom lugar para ler um livro. O impulso era de gritar “e o pensamento lá em você, desliga essa coisa, moça!”.
A música acabou. Paz no trânsito de uma quinta-feira, às sete da manhã. Reabri aquele que é um de meus livros preferidos, apesar da simplicidade da escrita.
“– Agora você não pode partir – ela disse.
– Isso não importa – eu ri e chorei ao mesmo tempo. – Isso não importa, Ann. O paraíso não seria o paraíso sem você, então o jeito é dar uma fugidinha com você, o jeito é dar uma fugidinha com você.”
Ônibus lotado. E eu como ícone do martírio, num assento qualquer – longe da porta de fuga. Longe do ar. Longe da vida. Longe da tolerância zero. O Bentinho – não o do Machado, mas o do Vaticano – deveria me canonizar.
É proibido o uso de aparelhos sonoros. Que emitem sons. Sons organizados. Aquilo que a moça ouvia não era som. Era barulho. Ao menos, ela não cantava.
Eu, pouco após o nascer do Sol, acometido pelo que o dicionário define como distúrbio emocional caracterizado por um estado de abatimento mental, pela sensação de impotência, pelo sentimento de que a vida não possui sentido, podendo, se não tratado, conduzir ao suicídio. (Entendeu o título agora?)
A tristeza de um trajeto de quinze eternos minutos abrigada no som do vento, quando se conseguia.
No final de tudo, quando a moça desembarcou – antes do último ponto da linha, no metrô –, a torcida corintiana e flamenguista comemorou com um vibrante “ufa” e um “aê!”.
Menos eu.
A concentração perdida numa manhã de outono não seria mais encontrada. Nem com os olhos por sobre a neblina que navegava sobre o rio Tietê.
“Minhas últimas palavras, sussurradas para ela.
– Que o inferno seja nosso paraíso.”
Deveria ter dito isso para a moça. Ela ficaria contente e talvez usasse o fone de ouvido. Eu ficaria ainda mais, porque sei que inferno ou paraíso devem ter espaço suficiente para que eu possa me manter distante dela.
Amém.
Blasfêmia dá fogueira.
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