Uma pequena vítima tentava fugir, estava cercada; só que num descuido do algoz correu para a luz
Era noite e a rua estava escura. Nada incomum em uma cidade politicamente abandonada como São Paulo. O vento jogava poeira em meus óculos e nós dois caminhávamos de forma pacata, iluminados apenas pelo reflexo solar na Lua.
Não havia qualquer carro ou qualquer alma viva que pudesse nos fazer companhia. Talvez algum fantasma – mas se lá estava, não quis se manifestar. O breve caminho entre uma casa e o supermercado pode preparar um crime.
Eis que, no breu, um único raio de luz do céu clareou o asfalto. Perto de uma esquina à esquerda (porque sempre viramos à esquerda). Naquele pedaço, corria um gato cinza. Seu rabo balançava suavemente e seu focinho tocava o chão.
Algo de estranho acontecia. Porque uma pequena bolinha (não maior do que uma bola de golfe) corria na frente do animal. “Olha, amor, um filhote de gato”, eu disse. A miopia me impediu de perceber, a princípio, que era uma refeição.
Um pequeno rato. Um filhote. Tão pequeno e indefeso que parecia gritar de desespero ao fugir daquele gato gordo com cor de poeira, que deve ter fugido de sua casa para namorar e acabou encontrando um jantar extra e, vá lá, saboroso.
O pequeno parava, de repente, próximo da calçada. E então, o predador levantava sua pata de garras afiadas (ao menos em minha imaginação, era assim). Batia com ela sobre o ratinho (com inicial minúscula, sem teste de DNA e café no bule).
A vítima tentava fugir, mas era cercada. Não havia escapatória. Seria o fim. Uma dentada e seria o fim. Eis que o gato abriu a boca. O rato já conseguia ver a luz. Ela se aproximava rapidamente. E até mesmo o gato se assustou com ela.
Era um carro. O filhote de roedor não perdeu tempo com a distração de seu algoz e correu para o meio da rua, enquanto a luz chegava mais perto. Quando o gato olhou para o rato, quando nós olhamos para o rato, a luz passou. E um silêncio tomou conta.
A respiração se prendeu por alguns breves segundos, enquanto procurávamos pelo ratinho, sem conseguir encontrá-lo. Atirado a alguns metros de distância, foi o gato quem o achou. Jazia, de patinhas para o alto, como se dormisse em um bueiro.
Um assassinato que evitou outro assassinato. O motorista fugiu sem prestar socorro à vítima. E o gato, faminto, cheirou a presa morta. Farejou e farejou. E foi embora. Deixou ali um filhote de rato que teria uma vida inteira pela frente.
O gato foi embora e deixou ali, no asfalto sujo, um pequeno rato morto, cinza como a poeira, cinza como o gato, cinza como o raio de luz que descia das estrelas naquela escuridão de inverno. Essa alma ainda deve vagar pela vizinhança.